Gabriel de la Mora não foi o primeiro artista a usar fezes e outros materiais biológicos na construção de uma obra.
Na sala 1 do Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, na exposição “Veemente”, uma obra do artista mexicano Gabriel de la Mora chama atenção por usar, além de tinta, as fezes do artista como matéria-prima.
Na descrição técnica, além da indicação dos materiais, há uma indicação de “receita para fazer uma obra de arte”, descrevendo bolinhos de camarão, arroz frito misto, rolinho primavera de legumes, frango, ave fênix, neve de limão e água mineral. Por fim, a receita recomenda “deixar digerir por 12 horas no intestino”.
A peça, que faz parte da série “Originalmentefalso”, faz referência a uma técnica usada por falsificadores para envelhecer obras de arte usando excremento.
Segundo o artista, o desenho original apresentava uma menina comendo um taco, realizado em tinta sobre papel. A assinatura da obra a atribuía ao famoso artista plástico mexicano Diego Rivera e trazia data de 1956.
“Uma pessoa comprou o desenho como se fosse um original de Diego Rivera, mas descobriu-se que era falso e foi doado ao projeto Originalmentefalso, no qual, por doação ou troca, a ideia é transformar uma imagem em monocromo [quadro em uma única cor] por meio de diversos processos ou técnicas, assim como transformar um falso em um original de minha autoria”, detalha Gabriel.
Conforme o artista, com o processo, a peça deixa de ser um falso Diego Rivera para se transformar em um original de Gabriel de la Mora.
“E que melhor forma de certificar a originalidade de uma obra do que com o próprio DNA ou informação genética do artista?”, provoca.
Redes sociais impulsionam debate
Nas redes sociais, vídeos comentando a obra repercutiram e geraram discussões. Nos comentários perfis debatem se a peça se trata de uma obra de arte ou não. Gabriel de la Mora afirma que fica contente com a divergência de opiniões.
“Há comentários favoráveis e contrários, e ambas as opiniões são respeitáveis. Todos somos diferentes, e adoro que exista liberdade de expressão e que cada um pense e reaja de forma distinta. Muitos gostam, muitos odeiam ou sentem repulsa, outros riem, se surpreendem, não acreditam, alguns ficam constrangidos, outros se irritam. Cada pessoa reage de uma forma, e isso faz parte do processo”, diz o artista.
Marcello Dantas, curador da exposição “Veemente”, diz acreditar que o quadro cumpre o seu papel ao fazer as pessoas se questionarem.
“Arte é para isso. Qualquer questão artística que mobilize as pessoas – seja pelo ultraje, seja pela paixão, seja pela beleza, seja pelo problema, seja pelo que ela incomoda–, está no papel da arte. A arte precisa empurrar essas fronteiras um pouco”.
“Toda vez que as pessoas se inquietam e perguntam: ‘Mas isso é arte?’… Quando você faz essa pergunta, para mim, já é arte. Se gera dúvida, agora é arte, porque você sagrou com essa pergunta”, defende Dantas.
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O curador destaca ainda que não foi só Gabriel de la Mora, ou outros artistas contemporâneos, que enfrentaram o questionamento de validação da obra ser arte, ou não, mas que esta é uma discussão inerente à história da arte.
“Mesmo os modernistas, mesmo todos os impressionistas. Todo mundo, em certos momentos, ouviu essa pergunta: ‘Mas isso é arte?’. E ao ter feito essa pergunta, expandiu a definição de arte, foi um pouquinho mais além. Isso é ótimo, maravilhosamente saudável. É para isso que a gente serve”, afirma.
Materiais atípicos
Na exposição “Veemente”, além da obra feita com excremento, o visitante se depara com peças feitas com materiais atípicos, como asas de borboletas, poeira do ateliê do artista, unhas, palitos de dente, pedaços de espelho, entre outros.
“Eu não escolho os materiais; sinto que eles me escolhem. Me interessa a ideia de que tudo existe para cumprir uma função. Quando essa função termina e algo se torna resíduo, o fim pode se transformar no início de outra coisa”, afirma Gabriel de la Mora.
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O artista detalha que, cada vez que usa um material não convencional, faz uma longa pesquisa para a melhor aplicação. No caso da peça que usa excremento, consultou um restaurador que o orientou como eliminar o odor, gerar aderência e evitar qualquer decomposição.
Para Dantas, a capacidade do artista de conseguir trabalhar com qualquer material e enxergar para além dos limites convencionais é um dos principais destaques do mexicano.
“Ele é uma dessas mentes que é capaz de fazer arte com qualquer coisa. Isso é uma coisa sobre a exposição: a exposição é uma mente que vê. Veemente. Ela é uma atitude intrépida diante da vida em que tudo pode se transformar em obra”.
“Não tem nada que limite um artista a ser um artista. Um artista não precisa de nada para fazer uma obra, porque a condição dele é fazer as coisas se transformarem. E ele faz isso lindamente”, descreve.
A exposição provoca ainda o visitante a fazer a própria obra de arte, disponibilizando alguns materiais, como fios coloridos, pedaços de casca de ovos, palitos, sopa de letras, e pequenas miçangas, por exemplo.
“A interatividade na exposição existe exatamente para tentar empoderar as pessoas com a criatividade. A grande razão para se fazer arte é que você inocule o desejo de fazer arte em mais pessoas”, afirma Dantas.
Não é a primeira vez na história da arte
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Gabriel, porém, não foi o primeiro artista a usar fezes e outros materiais biológicos na construção de uma obra de arte.
Uma das obras mais famosas da história da arte nesse sentido é a série “Merda de Artista”, de 1961, do italiano Piero Manzoni, que consiste, literalmente, em 90 latas com fezes do artista.
Inspirada pelos “ready-mades”, objetos industriais comuns elevados à categoria de obra de arte, Manzoni comercializou as latas pelo valor correspondente ao peso do ouro. Em 2016, uma delas foi vendida em um leilão por 275 mil euros – o equivalente a R$ 1,7 milhão na conversão atual.
Em 1974, a sérvia Marina Abramović fez uma performance na qual o próprio corpo foi o objeto. Na ação, a artista colocou 72 objetos sobre uma mesa — incluindo itens como rosas, tesouras, facas, lâminas de barbear, chicotes e até uma pistola carregada.
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Abramović permitiu que o público usasse qualquer um desses objetos nela como quisesse, por seis horas. Inicialmente, o público foi tímido, mas, com o tempo, as ações se tornaram violentas. Ao fim da performance, a artista saiu do local com cortes e sangramentos.
Em 1991, o artista britânico Marc Quinn fez a primeira de uma série de esculturas de autorretratos na qual usou o próprio sangue congelado. Até 2011, Quinn fez uma peça a cada cinco anos, para retratar o próprio envelhecimento.
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Em 2000, ele foi contratado para criar um retrato do biólogo Sir John Sulston, em homenagem ao trabalho desenvolvido por ele no Projeto Genoma Humano. Para a obra, Quinn utilizou o DNA de Sulston, como forma de celebrar a contribuição científica.
Museu promove visitas mediadas
Para conhecer detalhes e curiosidades do museu e das obras em exposição, o Museu Oscar Niemeyer promove visitas guiadas e mediadas. A atividade é uma oportunidade para, a partir do diálogo, ampliar as percepções, experiências e relações com as exposições.
A mediação é gratuita e livre para todos os públicos. Para participar, não é necessário ter conhecimento prévio em arte, basta comparecer ao local nos horários programados – divulgados no site e nas redes sociais do MON.
A mostra “Veemente”, com obras de Gabriel de la Mora, fica em cartaz no Museu Oscar Niemeyer até 22 de fevereiro de 2026.
O museu abre de terça a domingo, das 10h às 17h30. Os ingressos custam R$ 36 a inteira e R$ 18 a meia entrada.
Nas quartas-feiras a entrada é gratuita, assim como no último domingo de cada mês. Menores de 12 anos e maiores de 60 não pagam ingresso.
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Fonte: Mariah Colombo, g1 PR — Curitiba – 06/12/2025


