O DIÁRIO foi até a Ilha do Combu entender como funciona o processo de extração do óleo de andiroba, usado pela medicina tradicional da região. Processo envolve tradição, união e força das mulheres.
Na outra margem do Rio Guamá, nos quintais das casas localizadas ao longo da Ilha do Combu, as sementes que caem de grandes árvores nativas oferecem gratuitamente o óleo dourado que é um velho conhecido das populações amazônidas por suas propriedades medicinais. Porém, até que o óleo da andiroba seja levado a curar um machucado ou mesmo uma garganta inflamada, é preciso passar por um trabalhoso processo comandado pelas mãos de mulheres extrativistas da florestas, as guardiãs de um conhecimento secular.
Aos 92 anos de idade, Geralda Romana dos Santos tem na ponta da língua o passo a passo para se fazer a extração da andiroba – um processo que demora mais de 30 dias. A técnica artesanal foi aprendida pela matriarca ainda quando ela se mudou para a Ilha do Combu, vinda da comunidade do Baixo Acará, depois de casar-se. Apesar dos mais de 70 anos decorridos, a tradição e os ritos envolvidos na extração do óleo nunca foram esquecidos. “Quando eu vim pra ilha eu não sabia nada, eu não conhecia esse negócio de andiroba. Eu tinha 21 anos, me casei e vim pra cá. E eu vendo a minha sogra tirar andiroba, aprendi com ela e comecei a tirar também. Eu comecei a juntar andiroba, lavar, cozinhar, tirar junto com ela e fui aprendendo”.

O processo de extração inicia quando a própria natureza dá o sinal. É preciso esperar as sementes caírem das árvores para começar a coleta. Normalmente, elas começam a cair em dezembro e seguem assim até fevereiro. Depois disso, o processo só inicia novamente em junho. Nesses períodos, as mulheres passeiam por entre as árvores nativas e vão coletando os insumos caídos pelo chão, para depois lavá-los e cozinhá-los. Cumprido esse primeiro preparo, as sementes são deixadas descansando por um mês para escorrer toda a água. Só depois disso é que é feita a retirada da massa da andiroba, que depois de descansar por três dias, é amassada e acomodada em uma casca de tronco de árvore para, enfim, escorrer o óleo.
Há, ainda, outros saberes ancestrais, preservados e repassados de geração em geração, que até hoje são seguidos à risca pelas mulheres andirobeiras da Ilha do Combu. “Passa um mês cozida (as sementes de andiroba) para depois tirar e não é todas as pessoas que podem ver. Mulher gestante ou menstruada não pode ver, se não o óleo não desce”, explica Geralda. “Eu já vi isso acontecer. Então, nem todas as pessoas podem ver”.
Em respeito à tradição e ao saber repassado pelos mais antigos, na sede da Associação de Mulheres Extrativistas do Combu (AME Combu), no Igarapé Piriquitaquara, é mantido um quarto onde o processo de escorrimento do óleo é feito a portas fechadas. No local, só entram as mulheres da associação que, naquele momento, podem manipular a massa que é amassada de tempos em tempos, até que se extraia completamente todo o óleo de andiroba ali existente.
A atuação desse grupo de 14 mulheres que integram a associação hoje, incluindo Geralda e suas filhas e netas, foi possível porque as moradoras mais antigas da ilha ainda detinham o conhecimento sobre a extração do óleo. Durante muito tempo, Geralda conta que o óleo da andiroba servia apenas ao consumo interno das famílias da ilha e a pequenas vendas isoladas. Há cerca de quatro anos, porém, esse cenário vem mudando. “Quando eu vim pra cá era muita andiroba que dava e não tinha valor. O meu esposo pegava e já vendia pra um senhor que comprava. A gente tirava só pro uso porque ninguém dava valor, ninguém procurava andiroba”, recorda Geralda. “Agora, há pouco tempo, já faz uns quatro anos, que o pessoal foi dando valor à andiroba. Foi que as pessoas já foram ajuntar para cozinhar. Eu sempre cozinhei andiroba para o uso de casa, pra dar pra um vizinho, uma pessoa que precisasse a gente dava andiroba”.
Ainda que ela própria mantivesse o hábito de extrair e aproveitar o óleo de andiroba para curar garganta inflamada ou para amenizar as câimbras sentidas nas pernas, muita gente ao seu redor não compartilhava do mesmo conhecimento. Foi então que Geralda começou a repassar esse saber, primeiro para as filhas e netas, depois para alguma vizinha que ia até sua casa ver como se fazia a extração e já aprendia.
Hoje, as mulheres que formam a AME não só fazem a extração do óleo, como também já aprenderam a fazer outros produtos a partir do insumo, como sabonetes e repelentes. Entre essas mulheres está Dayse Sarmanho, de 50 anos, uma das netas de Geralda. “Eu nasci e me criei no Combu, via meu avô e a minha avó trabalhando com andiroba, mas eu nunca me interessei porque aquilo parecia muito distante da minha realidade”, lembra. “Eu fui morar em Belém, estudar, trabalhar e em 2017 começou a conversa a respeito desse projeto para fazer um resgate da andiroba. As minhas irmãs foram logo, mas eu já entrei lá pelo ano de 2020, gostei e fui aprender todo o processo”.

Organizadas na associação, as mulheres mantêm viva a tradição da extração artesanal da andiroba e fazem questão de seguir os ensinamentos dos antepassados. Dayse lembra que a associação já recebeu propostas de uso de máquinas que poderiam quebrar a amêndoa da andiroba in natura, para fazer a extração do óleo, mas elas sempre preferiram manter a forma de extração tradicional para preservar também as propriedades da andiroba. “A gente já teve proposta de máquinas para quebrar a amêndoa in natura, mas a gente sabe que vai perder as propriedades medicinais. Ela vai servir, sim, como cosmético, mas não vai ter aquela propriedade que a gente deseja e espera, que é a parte medicinal da andiroba, que é como a gente aprendeu a usar”.
Para que deem conta do processo de extração, as mulheres se organizam para se reunir em cada etapa, mantendo os cuidados para que todo o trabalho resulte na obtenção de um óleo com todos os benefícios que a natureza oferece. “Serve como uma terapia porque a gente vem pra cá, a gente conversa, a gente troca ideias. Tem o dia da quebra pra tirar a massa e a gente fica na expectativa: ‘será que essa massa vai render um bom óleo?’ Porque às vezes a gente ainda tem as perdas, quando o clima não tá legal, quando a mão da pessoa que amassou não tava legal naquele dia, o espiritual da pessoa não estava legal, a energia não estava legal. Enfim, são vários saberes que, com o tempo, a gente vai aprendendo”, considera Dayse. “A gente é muito grata a minha avó porque quando a gente começou esse projeto, o meu avô já não estava mais, então foi ela que já passou pra gente. Eu me sinto muito privilegiada e orgulhosa desse resgate que a gente teve através da minha avó. E hoje a minha filha já participa também, a filha da minha irmã também, então, a gente procura inserir eles para que isso não venha se perder. A gente está lutando por isso, pra manter essa tradição”.
TRADIÇÃO
Em muitas regiões da Amazônia, a extração do óleo da semente da andiroba é uma atividade comandada pelas mulheres.
Na Ilha do Combu, a grande presença de árvores nativas de andiroba nos quintais das casas fez com que a extração artesanal do óleo fizesse parte do cotidiano das comunidades.
Porém, durante muito tempo o produto não era visto como algo que poderia gerar renda e era extraído de maneira isolada apenas para consumo interno das famílias.

Percebendo o valor do produto e vendo o conhecimento tradicional da extração ameaçado diante da grande diminuição de mulheres que ainda exercem a atividade, um grupo de mulheres das comunidades Combu e Piriquitaquara, ambas na Ilha do Combu, tiveram a iniciativa de buscar apoio para o fortalecimento da cultura e geração de renda a partir dela.
Desde então, pesquisadoras da Universidade do Estado do Pará (Uepa) vêm atuando junto às mulheres andirobeiras do Combu. O trabalho resultou na criação da Associação de Mulheres Extrativistas do Combu (AME Combu), que hoje reúne 14 associadas.
Fonte: (Cíntia Magno/ Diário do Pará) – 15/06/2025