domingo, agosto 24, 2025
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Exu Tranca-Rua abre caminhos da ancestralidade contra o racismo religioso

No Dia de Tranca-Rua, a figura de Exu é lembrada como guardião, mensageiro e símbolo de resistência, mesmo ainda sendo alvo de racismo religioso no Brasil

No dia 24 de agosto, terreiros de norte a sul do Brasil celebram o Dia de Tranca-Rua, uma das falanges mais conhecidas de Exu. A data marca encontros, oferendas e giras dedicadas ao guardião das encruzilhadas, mas também convida a uma reflexão: por que ainda hoje essa entidade é alvo de preconceito e desinformação?

Embora seja celebrado como força de proteção, equilíbrio e abertura de caminhos dentro das religiões de matrizes africanas, Exu segue sendo confundido com a figura do “diabo”. Segundo pesquisadores e líderes religiosos, essa associação é fruto de um processo de demonização que começou ainda no período colonial brasileiro, quando os colonizadores europeus criminalizaram símbolos africanos como uma forma de enfraquecer as práticas dos povos escravizados.

“Exu não tem nenhuma relação com o diabo criado pelas religiões cristãs. Essa associação foi fruto da demonização das culturas africanas pelos colonizadores, que queriam enfraquecer nossos cultos e impor sua fé”, explica pai Robson de Ogum, Zelador de Santo da Casa de Umbanda Cabocla Toia Jarina, historiador e especialista em História e Cultura Afro-brasileira. De acordo com ele, compreender a figura de Exu é também compreender a luta do povo negro brasileiro contra séculos de opressão.

Pai Robson de Ogum fala sobre a figura de Exu e o preconceito em cima do culto à entidade.
📷 Pai Robson de Ogum fala sobre a figura de Exu e o preconceito em cima do culto à entidade. |Arquivo pessoal

De acordo com o pai de santo, na Umbanda Exu se manifesta como entidade espiritual que incorpora em médiuns para orientar, proteger e abrir os caminhos. “Ele é guardião das encruzilhadas da vida, espírito de quem já viveu na Terra e hoje trabalha no equilíbrio entre o mundo espiritual e humano. Sem Exu, nada caminha”, resume o sacerdote. Já na tradição do Candomblé, ele explica que Exu é um Orixá primordial, senhor do movimento, da comunicação e do axé. Segundo o sacerdote, Exu é o mensageiro encarregado de levar os pedidos dos homens aos Orixás, divindades do panteão africano ligadas às forças da natureza, e de trazer de volta as respostas.

Exu, uma vítima frequente do racismo religioso

Apesar da clareza com que a entidade é compreendida dentro dos terreiros, Exu continua sendo alvo de estigmas. Nas redes sociais, não são raros os comentários que associam a Umbanda e o Candomblé a práticas malignas e a imagem de Exu a figura do diabo. “É comum ver pessoas chamando Exu de demônio ou acusando a religião de feitiçaria. Isso dói, mas também fortalece nossa missão de esclarecer e afirmar nossa fé”, relata Robson.

O sacerdote e também historiador lembra que essa visão negativa está diretamente ligada ao racismo religioso. Segundo ele, durante o período da escravidão diversas manifestações culturais africanas, como as danças, os orixás, os tambores e os rituais espirituais, foram perseguidas e associadas ao mal, em uma tentativa de converter povos africanos ao cristianismo. Como explica Robson, essa herança histórica persiste até os dias de hoje, muitas vezes sustentada por discursos fundamentalistas baseados no conceito cristão ocidental.

Nos terreiros, a realidade é bem diferente. De acordo com o sacerdote, Exu é visto como uma espécie de guardião e conselheiro, além de ser considerado também como “mestre de vida”. “Ele guarda a porteira do Terreiro, protege os médiuns, orienta nas dificuldades da vida e ajuda no autoconhecimento. Ele é espelho do filho de santo, mostrando defeitos, vícios e caminhos de superação. Ele conduz cada pessoa pelo processo de autoconhecimento, disciplina e coragem, sem ilusões. Quem aprende com Exu aprende a caminhar com verdade”, explica.

Exu  é visto como guardião e conselheiro, ficando responsável também por guarda a porteiro de terreiros.
📷 Exu é visto como guardião e conselheiro, ficando responsável também por guarda a porteiro de terreiros. |Arquivo pessoal

Segundo o pai de santo, essa função faz de Exu uma das entidades mais transformadoras para os praticantes das religiões afrodescendentes. “Ele não entrega nada de graça, ensina que cada conquista vem com esforço e responsabilidade. É o famoso ‘abre-caminho’, não por conceder favores, mas por ajudar cada pessoa a remover obstáculos e enxergar possibilidades de vida que antes pareciam bloqueadas”, conta.

Exu, uma inspiração na cultura brasileira

No Brasil, Exu não está presente apenas no campo religioso. A presença dele se estende por diversas manifestações culturais, atravessando música, samba, carnaval, grafite, literatura e outras formas de expressão artística. Nas periferias urbanas, ele assume um papel ainda mais significativo, tornando-se frequentemente um símbolo de resistência social e de afirmação da identidade negra.

Um dos exemplos do impacto cultural de Exu foi quando ele foi celebrado como enredo da Grande Rio, no carnaval carioca de 2022. O desfile entrou para a história não apenas pelo espetáculo, mas também pela valorização de elementos da tradição afro-brasileira que por muito tempo foram marginalizados. A presença de Exu na avenida ajudou a reforçar a importância como referência cultural e religiosa e mostrou que a figura da entidade ultrapassa o espaço dos terreiros e se integra à memória coletiva do país.

Para pai Robson, Exu está presente “em cada manifestação que desafia o silêncio e abre caminhos para que a cultura negra se mantenha viva e pulsante”. De acordo com ele, a ressignificação desse da entidade é também uma forma de curar feridas históricas. “Durante séculos tentaram apagar Exu, demonizaram seu nome, esconderam sua força. Ressignificá-lo é devolver ao povo negro o orgulho da sua fé, afirmar que nossa cultura é sagrada e combater o racismo religioso com a arma mais poderosa que temos: consciência e axé”, afirma o sacerdote, lembrando que cada gesto cultural e religioso é uma resistência contra a tentativa de apagamento histórico.

Segundo o historiador, mais do que um símbolo religioso, Exu representa a capacidade da cultura afro-brasileira de se reinventar, resistir e permanecer relevante, influenciando gerações e inspirando movimentos de valorização da ancestralidade. Para ele, cada manifestação artística que o incorpora Exu reforça a ideia de que a força dele é atemporal e está nas tradições do passado, mas também no presente e no futuro da cultura brasileira.

Tranca-Rua, guerreiro antigo na luta contra o racismo religioso

O Dia de Tranca-Rua reforça esse movimento. Na noite de 23 para 24 de agosto, terreiros firmam pontos de força, realizam oferendas e giras dedicadas ao guardião e sua falange. É uma celebração que combina aprendizado, firmeza e renovação, fortalecendo laços entre comunidade e espiritualidade. Contudo, além do caráter religioso, a data se tornou também um símbolo da luta contra o racismo religioso e pela valorização das tradições afro-brasileiras.

Segundo pai Robson, com medo de reações de intolerância, muitos praticantes preferem ocultar a fé em espaços de trabalho ou estudo por medo de sofrer preconceito. “O simples fato de mencionar Exu pode gerar olhares tortos ou piadas. Isso mostra o quanto ainda precisamos avançar no combate ao racismo religioso”, diz o sacerdote.

Para ele, o caminho para transformar essa realidade passa pelo conhecimento. “Ao falar de Exu com verdade e dignidade, não apenas protegemos nossa religião, mas construímos uma sociedade mais plural, justa e consciente”, enfatiza.

Na mensagem final, o sacerdote resume: “Exu não é o mal, muito menos o diabo da dualidade cristã ocidental do bem versus o mal, não é destruição, ele é na verdade renovação. Ele é mensageiro, guardião e mestre da verdade. Ele nos ensina que a vida é movimento, que obstáculos existem para serem transformados e que evolução exige coragem. Honrá-lo é respeitar a ancestralidade, a cultura afro-brasileira e a própria vida”.

Assim, o Dia de Tranca-Rua se revela não apenas como uma celebração religiosa, mas também como um convite para que as pessoas reconheçam a pluralidade e a riqueza de suas raízes culturais, superando preconceitos e respeitando diferentes crenças e tradições.

Fonte: Júlia Marques – 22/08/2025

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