quarta-feira, julho 9, 2025
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Vinicius de Moraes seria cancelado hoje? O lado machista do poeta que foi expulso do Itamaraty

O ‘poetinha’, morto há 45 anos, ainda tem seu legado celebrado — mas, hoje, observado sob novas lentes.

“Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher/ Mas com singular delicadeza. Não sou bom/ Nem mau: sou delicado.”

“Formosa, não faz assim/ Carinho não é ruim/ Mulher que nega não sabe, não/ Tem uma coisa de menos no seu coração/ A gente nasce, a gente cresce/ A gente quer amar/ Mulher que nega/ Nega o que não é para negar.”

“Deus fez primeiro o homem/ A mulher nasceu depois/ E é por isso que a mulher/ Trabalha sempre pelos dois/ O homem acaba de chegar, tá com fome/ A mulher tem que olhar pelo homem / E é deitada, em pé/ Mulher tem é que trabalhar.”

Ao olhar contemporâneo, esses três trechos de poemas soam machistas e misóginos e seriam facilmente cancelados. Pois são respectivamente fragmentos de Elegia ao Primeiro Amigo, de 1943, Formosa, de 1965, e Maria Moita, obras escritas por Vinicius de Moraes (1913-1980), morto em um 9 de julho há 45 anos.

Para leitores atuais, já são motivos suficientes para classificar a criação do famoso “poetinha”, alcunha que ele tomou para si, como exemplos problemáticos da literatura e da música brasileira.

Com sua voz mansa, seu andar arrastado e o jeito de quem parecia estar sempre com um copo na mão — e uma mulher no pensamento —, fato é que Vinicius é parte incontornável da cultura brasileira.

Escritor, poeta, compositor, dramaturgo e diplomata, está entre os fundadores da bossa nova — é dele a letra de Garota de Ipanema, música de Tom Jobim (1927-1994) que também é vista hoje como machista por objetificar a mulher — e acabou personificando, em vida, o estilo boêmio e mulherengo dentro do estereótipo de uma elite da malandragem carioca.

Seu legado segue celebrado. Mas, hoje, é observado sob novas lentes.

“Com nosso olhar contemporâneo identificamos nele uma visão machista. Este nosso olhar nos faz perceber com bastante clareza, por exemplo, a objetificação feminina em Garota de Ipanema“, comenta à BBC News Brasil a professora e pesquisadora de literatura Lígia Menna, docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Vinicius de Moraes com Nara Leão; fato é que o poeta é parte incontornável da cultura brasileira — Foto: Arquivo Nacional
Vinicius de Moraes com Nara Leão; fato é que o poeta é parte incontornável da cultura brasileira — Foto: Arquivo Nacional

“Todo escritor e toda escritora é fruto de sua circunstância. A fase pop, principalmente, de Vinicius coincide com o desejo de criar uma mitologia nacional para vender o Brasil no exterior. É a idade de ouro da bossa nova. Naquele contexto, criar uma imagem da mulher ideal, na visão do turista, influenciou a construção dos preconceitos que podem ser apontados em sua obra”, contextualiza à BBC News Brasil o escritor e professor Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

“Ele também viveu como um personagem, o do macho latino-americano, do malandro carioca. São armadilhas do momento. Hoje também somos capturados por outras armadilhas, que a posteridade denunciará.”

Brasileiro radicado em Portugal, o músico Luca Argel lançou em maio um projeto chamado Meigo Energúmeno — Notas Para uma Leitura Antimachista de Vinicius de Moraes.

Ele, que é mestre em literatura pela Universidade do Porto, propõe uma reflexão ao legado do poeta brasileiro, com um disco que traz releituras de clássicos da obra de Vinicius e um livro que problematiza, à luz atual, as vozes machistas presentes no legado artístico deixado por ele.

“A obra de Vinicius continua muito viva, pois ainda tem um enorme público leitor e ouvinte. Da mesma forma, continuam vivos muitos dos estereótipos e ‘receitas’ de mulher, e de homem, as fórmulas patriarcais das posições que cada um deve, idealmente, ocupar numa relação e na sociedade. Existem muitos textos e letras de Vinicius que reforçam esses lugares onde o machismo se manifesta, às vezes de forma sutil, ou até meiga, romântica”, explica Argel à BBC News Brasil.

“Do tempo de Vinicius pra cá nós avançamos bastante em termos de igualdade e de mais autonomia e voz para as mulheres, mas muita coisa continua enraizada. É um trabalho que ainda demora algumas gerações para se consolidar”, completa.

“Vinicius, por continuar um autor relevante até hoje, e por ter falado muito sobre o amor e sobre a mulher, pode nos ajudar a identificar exatamente onde certos problemas persistem, e como identificá-los. Se estivesse vivo hoje, tenho certeza que ele seria o primeiro a revisitar e renovar sua própria linguagem, como tantas vezes ele fez ao longo da vida.”

Primeiros passos

Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu na Gávea, bairro no Rio, em 19 de outubro de 1913, filho de um funcionário público, violonista e poeta e de uma pianista amadora. Desde a infância, demonstrava talento para escrever versos.

Nos anos 1930, estudou na então Faculdade de Direito da Rua do Catete, hoje parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na mesma época, chegou a flertar com o movimento brasileiro nacionalista conhecido como integralismo, sendo filiado à Ação Integralista Brasileira.

Conforme descreve o site oficial mantido por seus herdeiros, em 1932 o poeta publicou seu primeiro poema, nas páginas da revista A Ordem, editada pelo escritor, professor e intelectual católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983). Seu primeiro livro, O Caminho para a Distância, sairia no ano seguinte.

Em 1936 foi contratado como censor cinematográfico do governo federal. Logo depois, ganhou uma bolsa para estudar inglês em Oxford e lá passaria cerca de um ano.

No retorno ao país, passou a atuar como crítico de cinema no jornal A Manhã. A essa altura, Vinicius planejava se tornar diplomata. Em sua segunda tentativa, foi aprovado no concurso seletivo do Ministério das Relações Exteriores e ingressou no Itamaraty.

Ele atuou em missões diplomáticas em Los Angeles, Paris e Montevidéu, mas em 1969 foi aposentado compulsoriamente pelo regime militar.

“Após uma ordem direta do presidente Arthur da Costa e Silva, Vinicius é exonerado do Itamaraty”, registra o site oficial.

“Vinicius foi um diplomata relapso, que tinha pouca presença burocrática onde serviu. Estava totalmente dedicado à poesia, à música e depois ao cinema. Era uma espécie de diplomata-troféu, que doava seu nome à carreira”, comenta Sanches Neto.

“Criou muitos embaraços por isso. A ditadura militar aproveitou o perfil boêmio dele, acrescentou a acusação de comunista, para exonerá-lo. Ele representava um Brasil que o poder ditatorial não queria divulgar. Um Brasil dionisíaco, enquanto os míticos, como toda ditadura, queriam um Brasil apolíneo.”

Na época, o que se ventilou foi que os agentes do regime viam em Vinicius alguém que representava má influência moral e ideológica.

A essa altura, o poeta era próximo dos intelectuais e artistas vistos como “de esquerda” e, portanto, oposição à ditadura militar que governava o país.

Desde 1942, na verdade, Vinicius já vinha sendo influenciado por ideias comunistas e tinha se afastado completamente do integralismo que iconizava a faceta fascista do Brasil.

“Vale a pena lembrarmos que Vinicius de Moraes era de esquerda, se posicionou contra o regime militar e era bastante irreverente”, ressalta Menna.Embaixador póstumo

Sanches Neto escreveu o capítulo O Poeta da Proximidade no livro Embaixador do Brasil — que o Ministério das Relações Exteriores lançou em 2010 buscando fazer justiça à relevância do poetinha para o Itamaraty.

Naquele ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promoveu Vinicius postumamente ao cargo de embaixador, em um desagravo público simbólico frente ao ato da ditadura que demoveu o diplomata do seu posto.

Então ministro das Relações Exteriores, o diplomata Celso Amorim escreveu na apresentação do livro que a aposentadoria prematura de Vinicius, então primeiro-secretário da carreira diplomática brasileira, havia sido uma “injustiça perpetrada pelo regime militar” como “parte do movimento de ‘caça às bruxas’ no serviço público”.

“O secretário Vinicius — poeta e compositor de renome — não se encaixava exatamente no modelo de funcionário público imaginado pelos donos do poder em tempos de AI-5“, anotou Amorim.

“Embora fosse um diplomata competente, que cumpria suas funções no Itamaraty com esmero, foi vítima da intolerância característica do regime.”

Na prática, a exclusão do corpo diplomático permitiu que Vinicius se dedicasse mais intensamente à vida artística. É desse período suas parcerias mais populares com Toquinho e suas turnês internacionais, incluindo shows em que subia ao palco embriagado — algo que na época era visto com romantismo, mas que hoje geraria críticas.

Vida intensa

álcool era sua companhia constante. Atribui-se a ele a frase de que o uísque seria o “cachorro engarrafado”, aludindo à ideia de que a bebida seria a melhor amiga do homem.

Quando foi destituído da carreira, Vinicius já era artista consagrado. Publicava livros de poemas com apelo popular, circulava entre os intelectuais e boêmios, compunha canções de sucesso. E, como inveterado apaixonado pelas mulheres, colecionava relacionamentos.

Ao longo da vida, foi casado por nove vezes — sua última mulher, 38 anos mais jovem, foi a jornalista Gilda Mattoso. Eles dividiram o mesmo teto nos dois últimos anos da vida de Vinicius.

“Casou-se nove vezes em busca de uma paixão eterna. A grande angústia é que ele sabia que não ia encontrar”, afirmou o músico Toquinho, seu parceiro, no documentário Vinicius, dirigido por Miguel Faria.

O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dizia que Vinicius era o único poeta brasileiro que vivia como um poeta.

“Vinicius se multiplicou por ele mesmo muitas vezes. Como diplomata, morou em vários cantos do mundo, teve nove casamentos, quatro filhos, dezenas de parceiros musicais, publicou 13 livros, gravou dezenas de discos, escreveu cerca de 400 poemas, sobreviveu a dois graves acidentes — um de avião, outro de carro — e a duas guerras mundiais”, sintetizou, em 2008, texto publicado pela revista Bravo!, da editora Abril, em especial dedicado ao poetinha intitulado O Poeta da Vida.

“Ao mesmo tempo, foi um homem dividido por ele mesmo: viveu entre o terno e a gravata da diplomacia e a roupa branca e os pés descalços da poesia; entre a euforia da paixão e a tristeza profunda da separação; entre as festas do Itamaraty e as ‘comidinhas de bêbado’ dos bares cariocas; entre o coro da igreja e o batuque do candomblé; entre os amigos tradicionalistas e os irmãos sambistas; entre a contemplação e a inquietação”, prossegue o texto.

“Ninguém chegou tão perto da vida cotidiana, do prosaico”, disse o jornalista e romancista brasileiro Antonio Callado (1917-1997) no documentário Vinicius.

O Neruda brasileiro

Vinicius com Pablo Neruda e Jorge Amado, em foto de 1956 — Foto: Arquivo Nacional
Vinicius com Pablo Neruda e Jorge Amado, em foto de 1956 — Foto: Arquivo Nacional

Para Sanches Neto, a totalidade da obra de Vinicius tem um peso irregular, “porque foi um poeta que produziu muito”.

“O interessante nele é que começou com uma literatura velha, formalmente falando, mística, influenciada pelos escritores católicos, e despaisada. Depois ele descobre o Brasil, moderniza as formas de expressão e ganha um lugar entre os grandes poetas modernos”, diz.

“Mas o seu desejo de chegar à multidão o leva à música, o que o torna uma figura pop. Fez a carreira de jovem poeta velho para um velho poeta jovem. Rompeu o circuito meramente intelectual. Sua melhor poesia traz a soma destas três fases.”

“Nas artes, ele foi capaz de aliar a tradição à modernidade. Rompeu com padrões pré-estabelecidos até então”, enfatiza Menna.

“Vinicius dessacralizou a literatura, assim como fizeram outros de sua geração.”

A sua face poética que, revisitada, parece soar mais problemática é justamente a que escancarou seu aspecto devoto à mulher — mas uma mulher quase sempre submissa, sensual e pronta para servir ao homem.

Suas metáforas de amor submisso, que à primeira vista parecem românticas, hoje são discutidas como reflexo de uma estrutura patriarcal e machista.

Menna lembra que o poetinha era amigo do chileno Pablo Neruda (1904-1973) e, “assim como ele, Vinicius desenvolveu uma poesia que podemos chamar de sensual, do amor”.

“Ele atualizou o gênero do soneto, deu uma nova linguagem mais real, moderna e cotidiana [ao formato]. Seus versos se tornaram populares em diferentes camadas sociais”, afirma a professora, citando como exemplos sentenças como “de repente do riso fez-se o pranto”, de Soneto da Separação‘, e de “que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”, de Soneto da Fidelidade.

Mas a especialista frisa que outras fases do poetinha também são de “grande contribuição para a literatura brasileira”, como seus poemas de cunho social.

Desta lavra, são exemplos A Rosa de Hiroxima — que depois ganhou o mundo na voz de Ney Matogrosso — e O Operário em Construção.

Ao mesmo tempo, Menna lembra que os olhares atuais não devem “passar o pano” para os aspectos problemáticos de sua obra.

“Infelizmente, o machismo tem marcado muitas gerações há tempos. E nos anos 1950, 1960, e 1970, essas questões eram pouco discutidas”, ressalta.

“Atualmente, avançamos muito, a passos lentos, em diferentes pautas feministas. E precisamos ficar atentos e atentas ao sexismo, à misoginia, à violência contra as mulheres e a objetificação de seus corpos”, argumenta.

E resistiria ele à contemporânea cultura do cancelamento das redes sociais? No caso de Vinicius de Moraes, isso significa revisitar sua obra com lentes contemporâneas, sem anacronismos fáceis, mas também sem condescendência.

Reconhecer que sua poesia ajudou a redefinir a sensibilidade brasileira — e que, ao mesmo tempo, cristalizou imagens de mulher, de raça e de amor que hoje soam ultrapassadas.

“Artista com uma produção tão rica e intensa como a de Vinicius contribuíram consideravelmente para as artes. Por outro lado, trazem, a partir do nosso olhar contemporâneo, questões polêmicas que precisam ser discutidas sem desmerecer seu grande valor”, reflete Menna.

“Nunca podemos jogar o bebê com a água do banho. A obra de Vinícius precisa ser lida, apreciada e criticada a partir de nosso olhar contemporâneo, com consciência, analisando e trazendo os problemas para o debate.”

Talvez o próprio verso mais citado de Vinicius nos ajude a compreender seu legado.

“O amor é eterno enquanto dura” — porque também o encanto dos mitos culturais não é eterno. Ele dura, resiste, se transforma, e, se for forte o suficiente, sobrevive até à crítica. Como o poetinha.

Cancelamento?

“Ele podia ser cancelado? Acredito que sim. Não só ele como vários artistas de sua geração”, analisa Menna. “Mas como progressista que ele era, acredito que hoje em dia ele próprio iria rever seu posicionamento, sua obra, se adaptar.”

Argel argumenta ser possível problematizar a obra de Vinicius sem cair no cancelamento.

“Eu acho que a crítica quando é feita com muito rigor, dedicação e honestidade, é a maior homenagem que se pode fazer a um artista. É a maior prova de que ele foi levado a sério, lido e ouvido com toda a atenção”, diz.

“A crítica que faço à obra do Vinicius em nada diminui a importância dele, ninguém teria esse poder. Eu, e acho que qualquer pessoa que leia o meu livro, continuará admirando a enorme beleza das canções, dos poemas, das peças, das crônicas… Mas vai ganhar uma ferramenta a mais de leitura, uma camada que antes estava invisível, passa a ficar visível. É uma estratégia de crítica, na minha opinião, bem mais rica e eficaz do que o cancelamento.”

Viúva de Vinicius, a jornalista Gilda Mattoso diz que no âmbito pessoal o poetinha não era machista.

“Eu não o definiria como machista porque ele tinha muito respeito pelas mulheres. E admiração, mesmo”, afirma ela à BBC News Brasil.

“Mas ele era de 1913. A gente tem de considerar isso. Então dava a impressão de ser machista. Mas no trato, não era não”, complementa.

Mattoso conta que suas lembranças do convívio com Vinicius são “as melhores possíveis” de uma rotina “muito harmoniosa”.

“Vinicius levava a vida com bastante leveza e, enfim, o dia a dia era de um casal normal”, relata. “Ele sempre foi muito atencioso e delicado comigo e com as pessoas que, de um modo geral, estavam em nossa casa, que frequentavam a nossa casa.”

A viúva do poetinha comenta que, a despeito da diferença grande de idade, ela era “mais mãe dele do que ele meu pai”.

“Ele era muito atirado, sem limites, sem freio. Eu era mais contida. Então eu era quem botava um pouco de disciplina na parada”, recorda.

Fonte: Por BBC – 09/07/2025

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